Universalidade: uma das bases de um SNS sustentável

por Pedro Lopes Ferreira
É evidente e indiscutível o contributo do SNS para a saúde dos portugueses e para a coesão social. No entanto, não é possível falar-se de sustentabilidade do SNS sem discutir a universalidade dos cuidados.
A palavra ‘sustentabilidade’ não pode ser só interpretada como simples sustentabilidade financeira, mas também, e principalmente, como significando até que ponto o SNS tem estado, está e estará a desempenhar a sua missão de garantia de estado de saúde aos portugueses. E, de uma forma simples, talvez se possa dizer que a sustentabilidade existe quando os cidadãos vivem de tal modo que não impedem ou inibem as gerações futuras de atingir as suas necessidades.
Segundo a OMS qualquer sistema de saúde possui várias funções (governação, prestação, financiamento, e geração de recursos), pretendendo que o desempenho destas funções responde a uma série de objetivos intermédios (acesso, cobertura, qualidade, segurança, promoção e eficiência) e a três objetivos finais: (1) melhorar a saúde dos cidadãos, não só em termos médios mas também em termos de distribuição e de equidade; (2) garantir uma boa resposta na prestação de cuidados, sendo o cidadão encarado na dupla qualidade de pessoa com direitos e de utilizadores de um serviço; e (3) justiça na contribuição financeira, defendendo que o financiamento do sistema deve ser feito de acordo com o rendimento dos indivíduos, e ser realizado sempre tempos antes da efetiva necessidade dos cuidados. Isto é, a contribuição financeira para o sistema de saúde deve ser o mais proporcional possível aos seus rendimentos e completamente independente do momento da prestação de cuidados. Assim, ninguém deve deixar de recorrer aos cuidados de saúde por questões económicas, nem ninguém deve ficar com problemas económicos por ter recorrido aos cuidados de saúde.
Por outro lado, a nossa Constituição, para além de defender o princípio da solidariedade, defende, entre outros, o princípio da universalidade no acesso aos cuidados de saúde, garantido através de um serviço nacional de saúde. Assim, é neste contexto que o problema das taxas moderadoras se deve colocar. O que nos deve preocupar não é o valor ou a percentagem de aumento destas taxas, mas sim se a subida substancial do seu valor, independentemente da percentagem de isentos ou dispensados, vai ou não colocar, em determinados grupos populacionais, o dilema entre aceder aos cuidados ou satisfazer necessidades económicas de subsistência do seu agregado familiar.
Também, ainda no âmbito dos princípios e valores na nossa Constituição, é importante relembrar as condições que o Tribunal Constitucional (Acórdão nº 731/95 de 14 de Dezembro) estipulou para considerar constitucionais as taxas moderadoras. Incluíam o facto de (i) terem como finalidade apenas a racionalização da utilização do SNS, i.e., não o copagamento dos cuidados, (ii) não corresponderem financeiramente ao pagamento do preço dos cuidados prestados e (iii) não serem aptas a criar impedimento ou restrições do acesso aos cidadãos económica e socialmente mais desfavorecidos aos cuidados de saúde. Será que o que se está a passar hoje em Portugal não evidencia violação destes critérios? Até onde vai o estado de exceção?
É óbvio que o Memorando de Entendimento em nada contribui para este debate ao colocar os pontos relacionados com as taxas moderadoras numa secção denominada ‘financiamento’ e muito menos quando, ao mesmo tempo que exige uma revisão substancial das categorias de isenção e um aumento das taxas moderadoras, obriga também uma redução substancial (em dois terços no total) das deduções fiscais relativas a encargos com a saúde, incluindo seguros privados. Para além disto, na revisão de 9 de Dezembro de 2011, exige também que, das taxas moderadoras deva resultar um aumento de receitas de 150 milhões de euros em 2012 e mais 50 milhões em 2013.
É o princípio da universalidade de acesso aos cuidados que está em causa.
Por outro lado, como consequência da intervenção externa que estamos a sofrer, as preocupações do Governo têm-se resumido a levar a cabo medidas de encaixe financeiro imediato que, mesmo quando justificadas pela classificação de ‘pais em emergência financeira’ que nos é agora atribuída, quando não acompanhadas por outras medidas de alcance temporal mais alargado, acabam por contribuir seriamente para o aumento das desigualdades, com consequências devastadoras.
A sustentabilidade do SNS é uma questão política e não de recursos financeiros. Mais uma vez, temos de começar a exigir dos decisores políticos uma melhor governação da saúde e menos dependência de interesses pessoais, corporativos ou económicos. A situação atual só é inevitável porque conscientemente se pretendeu que assim fosse e se continua a pretender que assim seja. Isto é, porque se preferiu destinar o Orçamento Geral do Estado para cobrir outros problemas e satisfazer outros interesses, que não a saúde dos portugueses. Mais do que as medidas mais ou menos avulsas do atual Ministério da Saúde, o maior risco para os portugueses tem residido na falta de preocupação social dos decisores políticos a vários níveis.