De volta à Democracia

As esperanças de um Portugal moderno – democrático e europeu 

Portugal tem vivido em democracia desde o 25 de Abril. Tem um programa de democratização inscrito na sua Constituição, e com este programa alcançou, nos 40 anos que entretanto passaram, - apesar do exercício de vários governos de direita - realizações marcantes no desenvolvimento da sociedade portuguesa. A democracia em Portugal foi uma escolha pela liberdade mas também por um modelo de desenvolvimento à altura da liberdade conquistada, assente na dignificação e valorização das pessoas.
E foi assim que a jovem democracia portuguesa, empenhada num programa de modernidade que virasse definitivamente a página sobre o passado de obstinação colonial e isolamento orgulhoso, abraçou, em 1986, a Comunidade Económica Europeia. Voltando-se para a Europa, ambicionou suprir os atrasos estruturais da sociedade portuguesa, designadamente em termos de rendimento per capita, de índices de alfabetização e saúde pública, de esperança de vida à nascença, de mobilidade dentro e fora do país.

A instalação de uma ambivalência 

Este duplo programa de democratização e de europeização que caracterizou a busca de modernidade em Portugal, contudo, cedo se mostrou profundamente ambivalente.
É verdade que o país se modernizou, aproximando-se aos outros países desenvolvidos da Europa. A sociedade portuguesa democratizou-se, com o acesso mais generalizado das pessoas a bens globais, nomeadamente à informação, à liberdade de circulação, ao ensino e à qualificação. A geração dos filhos do 25 de abril, formada no contexto da adesão à CEE, é hoje reputada como a mais bem preparada da História do país.
Mas todo este programa progressista trouxe consigo uma contraparte degenerativa. Sob uma superfície de modernidade, os atrasos estruturais persistiram. E se se venceu a vergonha do analfabetismo e a tragédia da mortalidade infantil, a verdade é que, por exemplo, a democratização cultural não chegou realmente a arrancar, como também não se criaram realmente bases sólidas que garantissem uma transformação sustentável das condições de vida da população, nomeadamente dos seus grupos mais fragilizados.
A nível europeu, os sinais de uma faceta degenerativa da modernidade esperada são ainda mais reveladores. O aprofundamento da integração revela-se muito mais uma construção de convergência económica conduzida pelos interesses das maiores potências europeias, do que um esforço eficaz de convergência social e de construção democrática no espaço europeu. Nos 28 anos que levamos de integração europeia, assistimos sobretudo à construção de um mercado comum, não de uma esfera pública comum. As transferências de soberania do plano nacional para o plano europeu nunca foram acompanhadas pelos meios de legitimação que a democracia exigiria. O défice democrático das instituições políticas a nível europeu tornou-se uma evidência, justificando plenamente a crítica de que o seu poder é desproporcionado face ao mandato de que dispõem. Pouco democrática e pouco participada, a construção europeia alheou-se politicamente dos cidadãos europeus, entregue ou às cúpulas intergovernamentais ou a uma organização elitizada e opaca de instituições e serviços a que se colou a designação de Eurocracia.
Se o aprofundamento da democracia não chegou nunca a afirmar-se como aposta política central da União Europeia, a convergência económica, pelo contrário, passou, logo desde o Tratado de Maastricht em 1992, a dirigir a agenda europeia em vista da consolidação do mercado comum. Com Maastricht, a União declina-se acima de tudo como uma União económica e monetária, regida por critérios que evoluíram ao longo de 20 anos até culminarem nos termos castigadores de um Tratado Orçamental.

A desativação da democracia

Na sequência do Memorando da Troika de 2011 e da política de austeridade, a ambivalência em que Portugal tem vivido desfez-se, mas na direção mais adversa à democracia. É certo que o programa da austeridade foi democraticamente consentido, mas este consentimento construiu-se com base em dois termos perversos: por um lado, a presunção de culpa de uma sociedade que terá vivido acima das suas possibilidades; por outro, a ameaça do anátema moral de incumpridores, aliada ao cutelo de graves consequências castigadoras. Ora, este consentimento de quem cede à culpabilização por escolhas passadas e ao medo de um futuro de incertezas é mais uma rendição do que um consentimento livre. E como é próprio de uma rendição, coloca-se em termos que poucas ou nenhumas condições admite. A rendição incondicional à austeridade tem significado a exigência concreta de uma capitulação de direitos sociais e laborais, bem como de um desmantelamento da organização do Estado social. Desde 2011 que os portugueses têm vindo a ser vítimas de um programa político que não só facilitou despedimentos, como levou a cabo uma série de cortes - nos subsídios de desemprego, nos ordenados, nas pensões, com grave repercussão na qualidade de vida da sociedade portuguesa. Este programa político tem conduzido eficazmente os portugueses a uma existência social marcada pela precariedade e pela naturalização da desigualdade. Em suma, o resultado tem sido a degradação das condições materiais imprescindíveis aos cidadãos para exercerem os seus direitos e deveres democráticos.
Esta rendição visou porém mais do que aspetos ligados à democracia social, impondo à comunidade política consentir um trade-off em que se troca democracia política por avais da Troika, seja na forma de compromissos constitucionais lançados à mesa das negociações para fazer cumprir compromissos de pagamento de juros de dívida, seja na forma de renúncias de soberania impostas pelo Tratado Orçamental, seja na forma de uma ação governativa contrastante com o programa eleitoral por que o atual Governo se fez eleger, seja, finalmente, por uma apresentação da austeridade e de todas as suas consequências como inevitabilidades indiferentes a qualquer fonte de legitimação democrática.

Governar à esquerda: de volta à democracia


Perante estas condições, um projeto que se proponha governar à Esquerda tem de interromper o processo em curso de desativação austeritária da democracia e avaliar das possibilidades de um construção europeia de novo centrada no ideal de uma comunidade democrática alargada e inclusiva.
Isto significa restaurar em Portugal a legitimidade da Constituição, para prosseguir os seus grandes objetivos de democratização emancipadora da sociedade, enquanto escolha política fundamental do regime, que nos une como comunidade política na partilha de um projeto de futuro. Um Governo de Esquerda tem hoje, em primeiro lugar, de ser um Governo pela Constituição.
De forma mais ampla, é a própria faculdade de escolha política que tem de ser devolvida aos cidadãos, imprescindível seja em Portugal, seja no espaço da União Europeia. A ausência de alternativas é só um logro da austeridade a que é necessário contrapor que as decisões em democracia não dispensam o debate público genuíno e a escolha sem ameaça. Como não dispensam a proporcionalidade do sistema eleitoral e a digna representação de todo o território nacional, como dois pilares da democracia representativa. Governar à Esquerda é governar exclusivamente através do mandato da legitimidade democrática e assumir a responsabilidade pelas escolhas, fazendo cumprir na ação governativa os compromissos programáticos assumidos eleitoralmente.
Mas, sendo imprescindível, este compromisso de restauração da capacidade democrática dos cidadãos e dos órgãos soberania não basta. Governar à esquerda tem de trazer de volta uma agenda de inovação democrática enquanto potência para a mobilização cidadã de soluções alternativas, seja através do reforço da institucionalização de dinâmicas de democracia participativa e deliberativa, seja através de uma governação mais amiga da iniciativa cidadã e do associativismo democraticamente organizado. Porque não está apenas em causa travar o ataque da austeridade sobre a democracia, mas vencer a austeridade pela democracia.

André Barata

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5 comentários:

Alfreda Cruz disse...

Vencer a austeridade pela democracia implica do meu ponto de vista que as dimensões deliberativa e participativa da democracia se articulem através da abertura às iniciativas cidadãs e ao reforço quer do associativismo democrático quer da motivação das comunidades pelas próprias instâncias que à escala territorial correspondente se co -responsabilizem pela abertura à participação cidadã na definição e promoção das políticas públicas com impacto no bem estar societal.
Uma tal política pressupõe uma dinâmica auto-sustentada entre os poderes instituídos e o poder emergente da cidadania activa, a partir de gabinetes de apoio a praxis de observação, debate, configuração e apresentação de propostas de participação, podendo suscitar infra-estruturas mobilizadoras do acesso dos cidadãos às fontes de informação e de produção de conhecimento, tais como centros de difusão saberes e de actividades experienciais de ciência viva, articulados à indispensável reanimação do sistema educativo formal e informal, incluindo os meios de educação a distância capazes de assumir valor acrescentado à oferta estritamente localizada

António F. Costa disse...

Suscrevo o comentário de Alfreda Cruz. A instituiçãso do regime democrático, mais do que direitos, impos-nos deveres nomeadamente o de participação contínua na vida pública. Não podemos deixar que outros decidam sózinhos sobre os nossos próprios destinos.

Paulo da Costa Ferreira disse...

A participação nestes debates de académicos e outras figuras com influência na opinião pública parece-me saudável mas carece de COMPROMETIMENTO POLÍTICO, sob pena de poder prejudicar os mesmos objetivos a que alegadamente se propõe. Encontro uma óbvia sintonia, na sua atitude inconformista quanto ao atual estado da Europa, entre João Ferreira do Amaral, José Pacheco Pereira, Manuel Carvalho da Silva, Adriano Moreira, Francisco Louçã, Ana Benavente, Boaventura Sousa Santos, etc. Porque não bastam palavras, é fundamental que aqueles que mais podem introduzam na agenda política uma visão alternativa sobre o modelo de União que nos convém, e que lancem declaradamente um amplo debate nacional. Eu concretizo: antes de mais é fundamental exigir a realização do primeiro referendo sobre matéria europeia em Portugal, designadamente quanto ao próximo tratado que, segundo está previsto (e várias vezes referido pela chanceler alemã), em breve introduzirá alterações significativas no atual quadro institucional da União Europeia.

yodleri disse...

A democracia não muda com discursos universitários nem com conversa de carroceiros e muto menos com a teimosia de Esquerda e Direita. 90% dos eleitores não sabe o que é isso e depois, não há estrada que não tenha duas bermas. Está na altura do povo ser informado e sensibilzado para a política real e não para conversa fiada.
Os do costume reunem-se com os amigos, montam plataformas, criam partidos, ganham o tacho e esquecem-se dos primeiros dias.
Nunca vi um agricultor representado em lado nenhum; nunca vi um pedreiro chamado a assumir responsabildades. Não. Quem deveras trabalha tem que continuar a fazê-lo porque é o seu trabalho que sustenta a política.
Não consigo apoiar uma política blá-blá-blá-democracia em que os seus representantes nunca trabalharam. Ou se o fizeram foi em áreas do terciário que é o sanguessuga do secundário que por sua vez explora o primário.
Vejam bem quem são vocês e depois, discutamos democracia.
Vocês com todos os livros e erudição e eu com os meus calos, a minha pobreza e a minha certeza de que cada pão que um padeiro produz alimenta muitos democratas que estudaram e falam bem... e nos trouxeram até aqui... para a beira do abismo. Contudo parecem não se sentir satisfeitos.
José Augusto Fachada Pereira, 50 anos, descartado pela conjuntura, vivo às custas doutrem que não pode sequer reduzir nada no IRS porque não a chulo há mais de 3 anos comprovados pela morada fiscal.
Esta é a democracia que conheço.

Congresso Democrático das Alternativas disse...

ANDRÉ CARMO
A democracia morreu, longa vida à democracia!

O contributo de André Barata lança algumas pistas para compreender muitos dos desafios com que a esquerda se confronta no que toca à reativação da democracia portuguesa, tornando-a mais densa, intensa, ampla e profunda e, nesse processo transformador, contribuir para a resgatar do capitalismo globalizado (financeirizado, especulativo, agiota e parasitário), dos seus estrategas e gestores. No entanto, contrariamente ao que parece sugerir o autor, não creio que a desativação da democracia encontre a sua génese no período de inaudita devastação social aberto pela conjugação do memorando da troika e da política de austeridade seguida pelo atual (des)governo. Considero que as raízes são mais antigas e, por isso, o diagnóstico é mais difícil de realizar com exatidão, os desafios são maiores e as respostas mais difíceis de definir, sendo ainda mais complexo o processo de construção de sujeitos políticos capazes de as levar a cabo com a determinação que exigem os tempos sombrios em que vivemos.

Pelo menos desde 2002, ano em que começaram a ser recolhidos dados no âmbito do Inquérito Social Europeu, Portugal apresenta sistematicamente resultados frágeis no que diz respeito a um vasto conjunto de indicadores políticos. O interesse pela política é pouco, o grau de relacionamento com as instituições e os representantes políticos é baixo, a automobilização sócio-política é diminuta, bem como o envolvimento com a militância partidária e o associativismo. Acrescente-se ainda os elevados níveis de abstenção eleitoral e temos o retrato perfeito de um país que se encontra de costas voltadas para a democracia. Quando as pessoas decidem alhear-se intencional e sistematicamente, mas não de forma injustificada, de um conjunto de processos e práticas sem os quais a democracia não existe de facto, a sua existência não passa de uma mera fantasia ou delírio coletivo. Neste sentido, pode dizer-se que a democracia se encontra desativada há muito, beneficiando da cumplicidade de muitos daqueles que agora se vitimizam.

A sua reativação depende hoje, como no passado, da capacidade de mobilização, organização e ação coletiva dos grupos sociais que, na sua pluralidade e diversidade, tenham a audácia de enfrentar todos aqueles que, através do seu discurso e da sua prática, tenham contribuido para a desativação da democracia. Não é tarefa fácil. Nunca foi. Mas só se pode reativar a democracia com uma inversão das prioridades sociais, com uma libertação do senso comum neoliberalizado, com uma radical transformação das condições de (re)produção socio-económica, com uma reconstituição dos imaginários coletivos, com uma abertura ao futuro e às possibilidades imensas que encerra, com uma esperança renovada e um impulso transformador que tem inevitavelmente de se construir. Só se pode democratizar a sociedade portuguesa, indo à raíz dos seus problemas. Ou somos capazes de o fazer coletivamente, à esquerda, ou corremos o risco de nos tornarmos vítimas de um pesadelo cujos contornos não somos ainda capazes de vislumbrar. Reconquistemos, pois, a capacidade de sonhar, hoje, aqui e agora!