Saúde e Educação

A degradação dos sistemas públicos de Saúde e Educação, ao longo dos últimos três anos, não traduz apenas os impactos resultantes da vigência do Memorando de Entendimento, assinado com a troika em Maio de 2011 e que impôs cortes orçamentais substantivos – agravados ao longo da implementação do programa de «ajustamento» – nestes dois domínios essenciais do Estado Social português. A contracção, fragilização e transformação progressiva dos sistemas públicos de Saúde e Educação reflecte também os efeitos da aplicação de uma agenda ideológica que foi fazendo, desde Junho de 2011, o seu caminho. A coberto, justamente, das supostas «imposições externas» e «inevitabilidades», que o próprio memorando comportaria.

Estas duas linhas de força – as restrições de natureza orçamental (os cortes propriamente ditos) e as medidas de natureza política e ideológica (orientadas para a descaracterização do Serviço Nacional de Saúde e da Escola Pública) – colocam em questão a capacidade de resposta efectiva destes dois domínios do Estado Social e têm desqualificado essas mesmas respostas enquanto instrumento de política social pública, de redistribuição e promoção da igualdade de oportunidades e de efectivação de direitos sociais, da cidadania e da coesão social.

No quadro dos constrangimentos que Portugal enfrenta, os desafios que se colocam a uma governação à esquerda, fundada em soluções políticas apostadas em responder com responsabilidade e determinação aos problemas do país, assumem pois uma dupla natureza. Por um lado, é urgente estancar e reverter os cortes orçamentais efectuados na Saúde e na Educação ao longo dos últimos três anos, que comprometem o contrato social estabelecido com os cidadãos nestes domínios. Por outro lado, é essencial devolver ao Serviço Nacional de Saúde e à Escola Pública os princípios matriciais de política social em que se fundaram e que foram sendo consecutivamente subvertidos, em nome de uma agenda liberalizante que aposta na sua residualização e desqualificação.

Sobretudo no que concerne a esta segunda vertente, a da restituição e recomposição da filosofia de actuação inerente às políticas públicas de Educação e Saúde, importa reafirmar e concretizar, entre outros, os princípios relativos: à igualdade e universalidade no acesso (o que pressupõe a existência de uma rede pública de estabelecimentos de ensino e de saúde, nos seus diferentes níveis, que responda às necessidades dos cidadãos); ao fomento da equidade e da igualdade de oportunidades (que pressupõe a não discriminação, designadamente por razões socioeconómicas, uma adequada organização dos serviços e a preservação e incremento da sua qualidade); à assumpção destes sistemas como verdadeiros sistemas, que se procuram adaptar às necessidades de cada contexto, contrariando assim a tendência recente de reforço das lógicas de concorrência e dualização, nefastas para o cumprimento dos direitos à Educação e à Saúde, consagrados na Constituição.

Uma governação à esquerda, no quadro das políticas públicas de Saúde e Educação, pressupõe ainda uma clarificação inequívoca do quadro de relações entre o Estado, os privados e o designado Terceiro Sector. A oferta pública deve potenciar os recursos instalados e o conceito de diferenciação e de supletividade da oferta privada deve regressar à agenda do debate político, à esquerda. Tal como devem ser profundamente repensadas e revistas as lógicas inerentes à constituição de parcerias público-privadas e as diversas formas de transferência de recursos orçamentais para privados. É fundamental que qualquer compromisso com outros agentes garanta a prestação de serviços de acordo com os princípios de política pública, não seja lesivo para o Estado e para as finanças públicas e seja escrutinado de forma eficaz e transparente. Impõe-se, nestes termos, a rejeição do modelo ideológico segundo o qual os sistemas de Educação e Saúde integram todo o tipo de agentes, independentemente da sua natureza jurídica. E, em matéria de entidades que integram o Terceiro Sector, por natureza um universo tão amplo e heterogéneo, uma governação à esquerda deve procurar estabelecer uma distinção clara entre os actores de uma economia social solidária e as organizações privadas que não comungam dos princípios inerentes às políticas sociais públicas.

Por fim, na agenda política de uma governação à esquerda, é necessário resgatar e reafirmar a ideia de que as políticas públicas de Educação e Saúde constituem instrumentos indissociáveis de uma agenda económica progressista e de modernização do país. Isto é, de um modelo de desenvolvimento que aposta na competitividade da economia portuguesa a partir da qualificação dos recursos humanos, do combate às desigualdades e do fomento do bem-estar e da coesão social. No esteio, aliás, da reflexão programática que o Congresso Democrático das Alternativas tem desenvolvido desde o seu congresso fundador.

Manuela Silva e Nuno Serra

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7 comentários:

Antonio Avelãs disse...

Um modo (complexo) de pensar uma política de esquerda na educação no contexto sócio-económico em que nos movemos é a interpretação que se fizer do que se entende por "igualdade de oportunidades" e as consequências que dessa interpretação se tirarem. O atual governo entende como justo o propiciar idealmente a cada estudante o acesso ao nível e patamar de reaprendizagem que ele pode atingir. Mas esse patamar, além de socialmente determinado por um conjunto de diversos fatores sociais tende, na perspetiva do governo a sr determinado precocemente- logo após o 4º ano de escolaridade, remetendo para uma divisão de classe nítida: os mais pobres e os menos capazes de se apetrecharem ao ambiente, à linguagem e aos rituais escolares serão encaminhados para os cursos (erradamente?) estigmatizados como de menor valia: os profissionais, os vocacionais... Com o argumento de que se lhes torna possível o sucesso, uma vez que a escola adpta as exigências àquilo que ele pode realmente dar. Opera-se assim a consolidação elitizante do ensino, salvaguardando os interesses dos mais poderosos que, posteriormente, reivindicarão, pela sua superior formação, o direito a governar o país. Kuito semelhante à cidade que Platão imaginou na sua República...
Uma política de esquerda tem de ter uma visão diferente da "igualdade de oportunidades": tem de a assumir como um fator -mesmo que limitado - de promoção da possibilidade de sucesso de valor igual a todos os estudantes em vez de operar uma discriminação classista.

Congresso Democrático das Alternativas disse...

Destaco, do texto escrito por Manuela Silva e Nuno Serra, duas ideias, que me parecem fundamentais e que têm forte impacto na educação:
1. As transformações profundas que, nos últimos anos, se têm vindo a operar nos serviços públicos em Portugal decorrem não só dos cortes orçamentais impostos (bem mais gravosos do que os previstos no memorando) mas também de uma ofensiva ideológica que vê a crise como uma oportunidade.
Na área da educação, o Governo cortou, entre 2011 e 2013, mais do triplo do que o memorando da troika impunha. Cortes sucessivos têm comprometido o regular funcionamento das escolas e das universidades, o desenvolvimento da investigação e da ciência, a frequência do ensino superior, onde cresce o abandono por razões económicas. Têm ainda vindo a reduzir as respostas educativas e os apoios para alunos com necessidades educativas especiais, a empobrecer o currículo, a agravar as condições de exercício da profissão docente e a provocar a instabilidade profissional e de emprego de milhares de docentes e investigadores.
Este “ajustamento das contas públicas” obedece, afinal, a um ajuste de contas ideológico com a educação democrática e com o pensamento pedagógico desenvolvidos após o 25 de Abril – uma ofensiva que já vem de trás, mas que o actual Governo tem vindo a aprofundar, com o regresso a um ensino elitista e segregacionista, a criação de vias de ensino subalternizadas, o agravamento das desigualdades entre alunos e entre escolas. Este caminho representa um passado a que não queremos, nem podemos, regressar.
2. Uma governação à esquerda deverá ser capaz de garantir ao Serviço Nacional de Saúde e à Escola Pública o investimento necessário à prossecução da sua missão. Isso obriga a uma clarificação do quadro de relações entre o Estado, os privados e o designado Terceiro Sector.
Na versão final do guião da reforma do Estado, reaparecem como prioridades do Governo a implementação do chamado cheque-ensino, o reforço da liberdade de escolha, um novo tipo de contratos de associação e a aplicação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, que pretende “promover progressivamente o acesso às escolas particulares em condições idênticas às das escolas públicas”. É necessário impedir que estas reformas se concretizem e discutir seriamente o seu impacto no modelo de desenvolvimento do país. O dinheiro dos nossos impostos deve servir para garantir serviços públicos de qualidade para todos, promovendo a igualdade de oportunidades, e não para alimentar lógicas de mercado, que têm no acentuar das diferenças a sua razão de ser.

Manuela Mendonça

Congresso Democrático das Alternativas disse...

O texto “Saúde e Educação”, da autoria de Nuno Serra e Manuela Silva, constitui um excelente ponto de partida para a construção de uma política progressista nestas áreas, baseada nos princípios da universalidade do acesso, da igualdade de oportunidades, da coesão social e do desenvolvimento sustentável. O texto sublinha, de forma muito acertada, o modo como a crise económica serviu de álibi para uma alienação das funções do Estado que, em grande parte, foram transferidas para o sector privado, muito frequentemente, com perdas evidentes em termos sociais e com ganhos económicos muito duvidosos.
A consolidação de sistemas públicos de educação e saúde – claramente distintos das ofertas privadas e de solidariedade – que busquem integrar e adaptar-se às necessidades dos diferentes contextos e grupos sociais que compõem a sociedade portuguesa, constitui efetivamente um objetivo que recolhe grande apoio na população portuguesa e que pode mobilizar as diferentes forças que se reveem nos ideais de esquerda.
Estando de acordo com a generalidade do texto, acrescentaria eu a necessidade de centrar os sistemas públicos de educação e de saúde nos ensejos e necessidades dos cidadãos, na imensa diversidade hoje que os caracteriza, e em particular naqueles que se encontram mais fragilizados, contribuindo assim para reverter as pesadas cadeias da desigualdade social. Afigura-se então fundamental que, em vez do império da burocracia e da desconfiança, tanto a administração central como as organizações educativas e de saúde adotem estruturas, critérios e procedimentos mais simples e transparentes, permitindo e fomentando a participação da generalidade dos seus profissionais e utentes na direção, auto-regulação e desenvolvimento dos processos.
No caso específico da educação, parece-me igualmente fundamental a construção de uma escola pública que não apenas valorize a diferença e a cooperação, em vez da competição e da exclusão, mas também que promova, desde a infância, disposições de reflexão, criatividade, sentido crítico e participação cidadã. Além disso, precisamos de escolas que estimulem em todos os jovens o espírito do trabalho, o gosto pelo conhecimento, o compromisso com a comunidade e com ambiente, a experimentação, a criatividade e a abertura ao mundo.

Pedro Abrantes

Congresso Democrático das Alternativas disse...

SAÚDE - UM PROGRAMA ALTERNATIVO
Por Isabel do Carmo

Um programa alternativo para a Saúde deve preservar o SNS. Teremos que ser concretos. O maior problema actual é o da desigualdade dos cidadãos perante a saúde. Para além das desigualdades de base (alimentação, habitação, trabalho) há desigualdades geradas pelo sistema. Uma parte importante das despesas (27%) sai do bolso do cidadão, uma das maiores percentagens europeias. São despesas na comparticipação nos medicamentos, exames auxiliares de diagnóstico e taxas moderadoras. Além disso, a escassez de meios públicos leva as pessoas que podem pagar a recorrer a seguros de Saúde e a serviços privados. A grande desigualdade é essa. Recorrem porque há bloqueio de acesso no público. Bloqueio sobretudo em relação às consultas com o seu sucedâneo de exames auxiliares de diagnóstico.

1. Localizemos os pontos do sistema geradores da situação. O principal é a falta de médicos de Medicina Geral e Familiar, e as listas de utentes sem médico de família. Logo, tem que haver contratação de médicos de família, enfermeiros e administrativos, seja para os Centros de Saúde já existentes seja para as Unidades de Saúde Familiar (USF’S). Este novo padrão funciona bem. Porém a abertura de novas USF’s tem estado bloqueada. Tem de ser desbloqueada.

Estas duas medidas não são o “país das maravilhas”, nem a instalação de equipamentos de ponta. Apenas aquilo que é básico na interface dos serviços com os cidadãos. Estas medidas básicas têm que ser enquadradas no orçamento da Saúde, o qual tem que ser reposto no mínimo.

2. No OGE (Finanças) terá que se reequacionar os gastos com a ADSE. A ADSE paga uma parte do orçamento dos grupos privados, sobretudo em urgências, exames, internamentos e cirurgias. Não paga ao serviço público. Estes custos devem terminar, separando completamente o privado do público. Não é necessário acabar com a ADSE. Houve um contrato com cidadãos que descontaram ao longo dos anos. A ADSE deve funcionar como uma mútua, suplementando os seus beneficiários nas margens de exames e dispositivos (óculos, aparelhos auditivos, próteses, etc.) que não são comparticipados pelo Estado.

3. Deverá haver uma articulação formal e legislada entre os hospitais e as unidades básicas de Saúde (actuais Centros e USF’S), com a criação duma direcção clínica comum e paritária. Os especialistas hospitalares devem deslocar-se aos Centros de Saúde.

4. O planeamento de recurso: nacional, atendendo a características populacionais (idade, distâncias) e à prevalência das patologias. Porém, deve haver autonomia das unidades dentro dos seus recursos. Articulação por unidades locais. Medidas da maior delicadeza deverão ser tratadas com antecedência e recorrendo também às pessoas que trabalham no terreno. Não é regra e esquadro. Admitir o orçamento participativo.

5. Criação de uma carreira profissional que acompanhe o doente e que seja a sua referência acessível para que não se sinta “perdido” entre médicos, instituições, exames, viagens, tal como acontece.

6. Promoção de reuniões de doentes, clínicos e investigadores para algumas patologias.

7. A rede hospitalar tem que ser urgentemente organizada. Com aqueles que estão no terreno, tendo em atenção prevalências de patologia e portanto de especialidades, articulação com os cuidados primários e especificidades de recursos de alta tecnologia.

8. As unidades de cuidados primários e hospitalares deverão ter autonomia para gerir o orçamento próprio, com alguma margem para opções facultativas.

9. Articulação formal entre Ministérios – Saúde, Educação e Administração Interna – ao nível local.

10. Revogação das legislações consideradas lesivas dos interesses do público e dos profissionais.

Congresso Democrático das Alternativas disse...

A ESCOLA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE PROGRESSO
Por Frederico Cantante

Embora seja uma das áreas da governação em que a estabilidade programática e a continuidade das políticas públicas se afiguram mais relevantes, a educação em Portugal é hoje um palco onde os princípios conservadores do executivo de direita favorecem um claro deslaçar do presente em relação ao passado, nomeadamente ao passado recente. Devido à centralidade que assumem nos processos de estruturação social, pelos quais se definem as dinâmicas de mobilidade e reprodução, o sucesso e o insucesso dos indivíduos, as políticas educativas tendem a ilustrar bastante bem os princípios ideológicos e os objetivos políticos que enformam a ação governativa na sua globalidade. A nitidez desse retrato apura-se quando esses princípios e objetivos se extremam.

A ambição de fortalecer a privatização do ensino, a partir do mito pueril de que os privados fazem melhor do que a escola pública, é disso um bom exemplo. É consensual que os desempenhos dos alunos são, no essencial, influenciados pelo seu enquadramento familiar e não pela natureza da instituição escolar que frequentam. A generalização de uma lógica de oferta e procura entre alunos e escolas, pela qual os mais favorecidos procurarão e serão procurados por determinadas instituições de ensino, apenas aprofundará as desigualdades de desempenho e de oportunidades. É por isso necessário, tal como defendem Manuela Silva e Nuno Serra, determinar de forma rigorosa as regras e critérios que separam o ensino público do ensino privado e do terceiro sector. Uma política educativa de esquerda, que vê a escola pública como um instrumento fundamental de igualização de condições e oportunidades, tem de se opor ao financiamento das escolas privadas e do terceiro setor cuja atividade seja redundante ou colida com a oferta pública de educação. O desinvestimento na escola pública e a canalização de verbas para outras instituições implica uma progressiva perda de qualidade do ensino público, que por sua vez legitima as críticas da direita ao seu desempenho.

Os princípios ideológicos e os objetivos políticos deste governo traduziram-se também, no campo da política educativa, no enganoso discurso da busca da “excelência” – que se alastrou, aliás, às políticas na área da ciência e investigação. De acordo com o ministro Nuno Crato, a educação pública em Portugal pecava pelo facilitismo. Passos eleva o discurso e introduz a metáfora da “salsicha”. De forma mais ou menos clara, sustentam que a democratização do sistema (na verdade, nunca alcançada na totalidade) teria implicado uma perda de qualidade do mesmo. Importa por isso filtrar os alunos prematuramente para se colher apenas a melhor uva. Importa também acabar com as ofertas educativas que permitam reintegrar adultos pouco escolarizados em trajetórias de qualificação. Os dados disponíveis contrariam a crença conservadora no aparente facilitismo do sistema educativo português, as boas práticas internacionais desaconselham a exclusão de crianças em exames da 4ª classe e o atraso qualificacional da maior parte da população ativa portuguesa exige que essa questão não seja varrida para debaixo do tapete.

Manuela Silva e Nuno Serra sublinham igualmente o facto de o investimento na educação ser um pilar decisivo para o progresso e desenvolvimento do país. De facto, da qualificação da população portuguesa dependerá a prosperidade económica do país, a diminuição sustentada do desemprego, a igualização das condições de existência da população, as receitas fiscais amealhadas pelo Estado e um conjunto alargado de indicadores de bem-estar social. Por ser uma fonte de progresso e desenvolvimento coletivo, mas também um instrumento nevrálgico no combate às desigualdades de recursos e de oportunidades, a qualificação da população é um desígnio que deve unir a esquerda, todas as esquerdas, no combate aos princípios ideológicos e à agenda política dos partidos da direita. O texto de Manuela Silva e de Nuno Serra é para isso um excelente ponto de partida.

Congresso Democrático das Alternativas disse...
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Congresso Democrático das Alternativas disse...

Da autonomia universitária até à Troika

Por Nuno David

É oportuno relembrar que os actuais problemas de sub-financiamento público do ensino superior correlacionam-se com a desvirtuação do conceito de autonomia universitária, resultante da introdução em 2007 do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), quatro anos antes da assinatura do memorando assinado com a Troika que viria a impôr, desde 2011, cortes substantivos e transversais em todos os domínios dos sistemas públicos. Se é certo que as restrições de natureza orçamental se aprofundaram com as políticas de austeridade propostas pela Troika e apoiadas pelo governo, não é menos certo que o enquadramento jurídico do RJIES havia criado as condições perfeitas para a implementação de um programa ideológico como o da Troika, compatível com a desresponsabilização do Estado pelo financiamento do ensino superior e pelo papel regulador no acesso equitativo dos cidadãos aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação cultural e artística.

Da Lei da Autonomia Universitária (1988) para o RJIES (2007) observou-se uma conversão da Universidade, antes guiada por processos internos de gestão democrática e geradores de dinâmicas sociais solidárias, para um estabelecimento funcional hierarquizado, focado em aumentar o seu desempenho através de receitas próprias por via de financiamento privado. À luz da obrigação de captação de receitas próprias, o Estado abstém-se na sua obrigação de dotar consistentemente as universidades de financiamento público, impondo cortes orçamentais insustentáveis, bloqueando projectos, áreas de referência e recursos humanos na investigação e no ensino, e afastando Portugal da trajectória ascendente na qualidade de investigação e ensino que vinha fazendo até 2007. Situação que expõe as instituições universitárias à tentação de celebrarem parcerias e contratos baseados em critérios de duvidoso interesse científico ou pedagógico, bem como à tentação de se apropriarem de valores de mercado conflituantes com o interesse público, do que são exemplo a profusa emergência de cursos de 2ºs e 3ºs ciclos (Mestrados e Doutoramentos) com propinas exorbitantes e inacessíveis até para o menos comum dos cidadãos de uma classe média alta. Cursos que são, em muitos casos, tutelados formalmente por universidades públicas, mas administrados por entidades participadas de génese privada, numa complexa teia de entidades e relações jurídicas de escrutínio difícil, no quadro das relações entre os sectores público e privado.

Não é pois de admirar que a estrutura das receitas próprias em algumas universidades portuguesas apresente uma crescente dependência relativa das propinas – i.e. exclusivamente dos pagamentos dos seus alunos – em detrimento da fatia decorrente de actividades de investigação e prestação de serviços, contribuindo para o afastamento da génese de uma autonomia universitária baseada no governo próprio, nas liberdades académicas de investigação e ensino, e na ligação à sociedade em prol do desenvolvimento nacional e regional. Em contraciclo, por exemplo, com as políticas públicas da mais dinâmica economia europeia, a Alemanha, que aboliu recentemente o pagamento de propinas nas suas universidades.

Num quadro de políticas públicas para o ensino superior, um modelo que reconheça a necessidade de continuar a proporcionar o acesso a fontes de financiamento e investimento privado, implica pois o reconhecimento de que o financiamento público continua a ser não só o factor crucial para a prossecução da missão das universidades, como deve ser radicalmente reforçado, prerrogativas para um funcionamento transparente da governação interna de uma universidade, da governação para uma sociedade decente e da governação de um País à esquerda. Condição que pressupõe o escrutínio e a clarificação do quadro da complexa (senão opaca) rede de entidades e relações jurídicas, que norteam a colaboração entre os sectores público e privado na esfera da governação interna da universidade.