A questão fiscal e a crise


por António Carlos dos Santos

A fiscalidade não desencadeou a crise europeia e nacional. Mas ajudou a potenciá-la, para tal contribuindo com várias políticas (opções favoráveis ao endividamento de empresas e cidadãos, promoção de instrumentos financeiros derivados, titularização de créditos, extinção ou reduções injustificadas de impostos, etc.). Vejamos alguns fatores:

1º) A previsão optimista de receitas. Não há métodos científicos capazes de preverem as receitas, múltiplos sendo os fatores que podem conduzir a uma sua quebra, a mais importante será a quebra (não previsível) de actividade económica. Mas pode haver empolamento fictício na previsão das receitas (justificando mais gastos) ou incapacidade de previsão dos efeitos recessivos das medidas de austeridade (subida de impostos, cortes em remunerações, etc.). Sem crescimento não há aumento de receitas.

2.º O exacerbar da concorrência fiscal. A deficiente coordenação e harmonização  fiscal europeias (e a quase inexistente coordenação fiscal internacional) leva a uma erosão das bases tributárias dos Estados que se lançam, de forma ofensiva, defensiva ou por imitação, numa corrida no sentido da menor tributação das empresas e do capital (dos factores móveis da produção) tentando, a todo o custo atrair empresas, capitais (bem como reformados, artistas, não residentes com altos rendimentos, etc.) ou evitar o êxodo dos que se encontrem no seu território. 

3.º) O falhanço da luta contra os paraísos fiscais levada a cabo pelo Fórum da OCDE e pela União Europeia, que permite que continuem a existir importantes fontes de fraude e evasão fiscais e de planeamento abusivo por parte de empresas em particular das grandes empresas transnacionais que aproveitam a existência de uma multiplicidade de diferentes convenções sobre dupla tributação (treaty shopping) para reduzir a carga fiscal, o mesmo acontecendo com os preços de transferência.

4.º) A consagração no desenho de alguns impostos, de verdadeiros privilégios ou nichos fiscais (paraísos fiscais internos), como o caso da maioria das taxas liberatórias em sede de IRS que se aplicam a rendimentos de capital e a mais-valias (e que justificaram na opinião do governo) a sua não tributação pelas taxas gerais e pela sobretaxa agravada do IRS.

5.º) A consagração de reduções de taxas, deduções à colecta, abatimentos à matéria colectável, etc. (muitas das quais podem configurar auxílios de Estado), sem existir razão visível para tal, para além da pressão de lobbies poderosos. A estes casos acrescem as medidas como a titularização dos créditos fiscais que são verdadeiros auxílios de Estado não declarados e que, por razões de transparência, seria importante conhecer o real impacto orçamental.

6.º) A consagração de políticas fiscais injustificadas ou erróneas, às vezes pela negativa, como a não tributação do jogo online. É o caso da abolição de impostos sem justificação suficiente (imposto sobre as sucessões e doações) ou da existência de despesa fiscal injustificada (incentivos que se prolongam para além do prazo, incentivos concedidos sem avaliação ou consideração do interesse público (ex: produtos financeiros), incentivos inúteis pois o investimento seria efectuado mesmo na sua ausência.

7.º) A baixa percepção do risco de fiscalização. Importa que sejam fixadas metas exequíveis e que a acção da fiscalização se efectue dentro dos parâmetros legais, sob pena de poder produzir efeitos perversos. A abolição da Unidade de Combate à Fraude Fiscal e Aduaneira (UCLEFA) e o fim da Guarda Fiscal não são medidas que contribuam para a prevenção da evasão e fraude. O mesmo ocorre com a criação de condições para uma justiça mais célere.

8.º) A questão do mercado paralelo ou informal, isto é da economia não declarada, estimada, consoante os estudos publicados, entre ¼ e 1/5 do PIB e que tende a crescer em conjuntura de crise. A sua inserção no sistema provocaria um importante acréscimo (direto e indireto) de receitas fiscais que poderia servir não só para aliviar o défice como ainda para reduzir a carga fiscal suportada pelos restantes contribuintes. Uma das fontes de alimentação deste mercado (e de favorecimento da fraude carrossel) é a forma como está estruturada a isenção do artigo 53.º do Código do IVA que, até hoje permanece intocada.

Não se pretendeu ser exaustivo. A discussão contribuirá, por certo, para clarificar o que deve ser uma política fiscal anti-crise. Pôr cobro ao massacre fiscal implica discutir a despesa pública (e sua legitimidade) e, no mínimo, repartir equitativamente os sacrifícios.